sábado, 5 de agosto de 2023

Todos os bares (Mária Santos Neves)

 

À noite todos os bares são iguais

Neuróticos caleidoscópios.

Em volta das mesas,

movimento.

Incontáveis garrafas de cerveja

Que levam à incontida urina

No banheiro fétido

O velho espelho

à espera do batom.

E em seguida nova investida

em outro solitário olhar.

 

À noite, todos os bares são iguais

Epidêmicos e

paranoicos.

Quebra-cabeças de gente

Em busca de se encaixar.


Adiante um belo

vestido negro

À caça de um blazer marinho

Olhares furtivos

Novos motivos

Para se achegar.


Ali ao lado, um relógio casado

Se envolve com

um xale indiano solteiro

e debaixo da mesa,

Um all star 

Com jeito de não estar

Seduz o scarpin dourado

Que se deixa tocar

Na mesa vizinha,

O guardanapo de papel

Manda recado

E adiante a coca cola

Brinda com a tulipa de chopp

Enquanto  o vinho branco

Enrubece de tesão

Um cigarro beija os lábios

Da fêmea no cio

Enquanto o macho ao lado

Esquece a angustia

Com uísque on the rocks.


Logo mais,  a ordem se

Inverte

E o caleidoscópio humano

Se embaralha

Para uma nova caça.

À noite todos os gatos são pardos

E todos os bares são parcos

Lugares de se encontrar.

E o caleidoscópio continua a girar

Virtualíssimo


Ele:
Ontem achei esse post mais antigo e eu, bipolar feito o planeta com seu Norte e seu Sul, senti uma tristeza tão terminal que pensei que nada tem jeito nessa vida.
Descobri que a vida inteira fui um serial lover, com relacionamentos superficiais e narcísicos, um pavão pavoneando a pavoa, um enganando o outro, até se afogar na própria falsa imagem.
O amor de verdade existe no verdadeiro, no real, com todas as faltas e dificuldades, sem delírios.
Eu só fiz isso uma vez na vida e me dei mal. Amei uma mulher com todas as suas asperezas e incompletudes. E me mostrei também humano e incompleto. 
Mas ela queria um homem perfeito para tb se sentir perfeita em um mundo perfeito, Narciso diante do espelho. 
Ela não consegue amar um homem que pode sentir dor e ou medo. 
Porque o amante amado é sempre o fodão, ainda que farsante. 
O serial lover vive da mentira e do engano, essa máscara não me serve mais.
É muito triste descobrir que o amor de verdade não consegue existir na verdade do real.



Ela:
Nossa! Achei o artigo muito bom e o seu texto muito doído.
Do-í-do.
Eu não sei, será que você era um serial lover?
Será que você está certo e reconheceu uma coisa que lá pelos seus 30, 40 anos era verdade?
Será que você está mesmo enxergando a si mesmo?

Sempre vi você assim, como alguém meio narcísico. Sempre me senti meio oprimida pela sua postura e acho que você nunca vai entender como eu me sentia pequena na sua presença, seu jeito de lidar com o sentimento, com a paixão, com a relação homem-mulher. Como você me passava uma sensação de auto-suficiência (será que tem dois ss, agora?). Aquele homem que não precisava nem que se trocasse um botão da roupa. Mas me oprimia mais a sua inteligência, o seu saber, aquilo que você apregoava sempre, como se eu nunca fosse chegar lá. 



Você realmente passou por cima de tudo pra me amar, como vive dizendo, superou meus defeitos, meus qualquer coisa, pra me amar de verdade. Isso é amor, sim. Mas você vive lembrando que eu não merecia esse amor. Você vive apregoando "Eu sou legal". Mas esquece de lembrar que eu também sou. 


Eu estou numa confusão mental há anos, porque gosto de você, você é o meu melhor amigo, você é alguém em quem confio e sei que me quer bem. E a quem eu quero bem, a quem eu jamais vou perder de vista. Isso não é pouco.
Mas não concordo com o dizer de "fria", "narcísica", em busca do homem perfeito. A única coisa que é verdade disso tudo é que eu sou extremamente crítica, eu analiso tudo e todos, e sou meio implacável com quem está do meu lado. Reconheço sim. Também acho que viajo num homem perfeito que não existe, mas esse é meu lado virginiana. Não é um homem perfeito que procuro, é a pessoa perfeita, qualquer pessoa, seja pai, marido, amigo, filho. Não é?


Uma das coisas que mais me incomodam  entre nós é essa ligação virgem X leão. Tudo bem que astrologia é uma balela, mas se a gente pegar qualquer astrólogo acho que ele vai dizer que Virgem e Leão nunca vão combinar...rsss. Essa combinação é fatal. É  unir o debochado àquele que não acha graça em nada. O escrachado ao pedante. O tímido ao espalhafatoso (como diz Caetano). Entendeu? 

Pegue o signo mais narcísico do Zodíaco e pegue o  mais crítico.
Pegue o signo mais vaidoso e o mais modesto, o mais travado.
Pegue o signo que adora elogios e  o mais low profile.
Pegue o que gosta de ser valorizado e aquele que vê defeito em tudo.
Rsss
Somos nós.

Ela: 

Minha amiga Ka perguntou meu signo e disse: - Nossaaaaa. Esse signo sofre. Esse signo soooofre.

Eu minimizei dizendo - Ah, Virgem leva a vida muito a sério, é só isso...

Fiquei brava com ela. Como assim, vai ficar colocando em mim a pecha de sofredora? Que saco. Mas talvez tenha um pouco de razão. Talvez eu persiga uma felicidade que não existe. Sei lá.
E outra, sou filha de Oxum. Oxum chora, chora. Oxum é mãezona, só faz chorar...Não sei o que fazer com esse meu jeito. Minha "sina".
Você tem razão, eu tenho uma marca, preciso me libertar.
Não é moleza a gente ser abandonada a caminho do altar. E o meu primeiro analista, aquele que pegou esse rojão, na segunda vez que fiz terapia com ele me falou pra sair dessa. Mandou enterrar o assunto. Juro.
E no meio da confusão inteira, ele foi bacana com você, sabe. Ele disse: - Fica com aquele que te ama.
Foi quando eu voltei com você, antes da nossa filha nascer.
Mas não tinha aparado aresta nenhuma, nem minha, nem nossa, entendeu?

Minhas amigas me acharam tristes na viagem. Eu estava felicíssima e elas vieram com essa. Costumam me atacar, cortando minhas palavras, debochando de meu jeito, me chamando de recatada, certinha, lerda. Eu fico com raiva, acho que passo uma imagem que não corresponde à verdade. Eu certamente vivi mais do que elas, sei mais do que elas, sou mais inteligente do que elas, e talvez saiba mais de relação amorosa do que a maioria delas.

Eu persigo uma totalidade em minha vida, um conteúdo. E num dado momento na praia, andávamos em quatro. Ta, Ju e Ka passaram quase metade do passeio falando do vestido de noiva da filha de Ta que foi comprado em Miami.
 Eu me isolei, me deixei andar sozinha, molhando os pés no mar e cheguei a chorar. Sabe uma coisa, a vida não é fácil pra gente como nós.

Eu continuaria a reflexão para pensar o que andou dando errado em nós, que você não vê. Mas acho que nunca vai ver. Talvez eu esteja errada. Eu sinto falta de proteção, sim. Isso não tem nada a ver com luxo, supérfluo, comodismo, materialismo. Tem a ver com não ter tanto problema, tanta coisa pra pensar. Ter que viver contadinho, pagando pra trabalhar. Nunca sair do vermelho. Eu não quero que você me sustente, nunca quis homem algum pra isso. Mas eu acho que nós dois estamos errando feio na vida. Fizemos tudo errado. Você, sem se precaver. Eu, nessa escolha insana da profissão, eu devia ter saltado fora quando era tempo. Eu sou muito melhor que isso. Eu e você somos muito, infinitamente melhores que isso.
No entanto, é só o que temos, é nossa única ferramenta, o cérebro. O cérebro pra trabalhar com um monte de gente sem cérebro. 
Beijos


Ele:
Nossa, que bonito seu texto. Viajei em tudo, voltei no tempo e estive lá na praia da Bahia, naquele momento em que você se isolou da conversa fútil e chorou sozinha.
Perdemos muita coisa mas não estamos derrotados.
Ainda temos nossa inteligência, nosso caráter, nossa alegria de viver.

Beijos.

Ela:
Que bom, eu senti que era verdadeiro. Como eu disse, a gente começa a escrever e vai baixando tudo. Não sabia que ia chegar nisso. Só que quem não tem analista acaba se autoanalisando e eu mesma não sabia que ainda estava baqueada com tanta coisa. Na verdade eu acho que somos ETs. Não que eu venha de outro planeta, isso não. Mas eu também não me encaixo bem. Não sei explicar.  
Ontem foi legal, não?

Beijos


Ele:
Eu já li que o mundo não é e nunca foi um lugar muito confortável para espíritos um pouquinho que seja mais evoluídos. Vamos estar sempre desajustados.
Nem por isso podemos perder a alegria de viver, é o que pode nos salvar.
Por exemplo, ontem foi pura alegria, assim seja.

Carta para você não ler (Para João, aos 18 anos)

Eu queria escrever uma longa carta pra você não ler. Não porque você não saiba ler. Não porque você não tenha olhos ou coração para entender. E sim, porque a carta que eu escreveria não precisaria de palavras. Eu queria escrever uma longa carta pra você sentir.
Nela, eu colocaria os sorrisos que guardei, nos milhões de segundos em que te amei. Colocaria as lágrimas que me caíram dos olhos, de felicidade, de tristeza, de angústia, medo. De tudo isso junto, por saber que você existia.  Por entender que sua existência seria essência em minha vida.  Enquanto vida eu tivesse, e mesmo quando eu não mais existisse.
Eu queria escrever uma longa carta pra você não ler. Nela, eu tentaria não ser piegas, nem exagerar nos ”eu te amo”, na voz melosa ou no olhar doce. Evitaria pegar nos seus cabelos – o que você detesta. Ou mesmo te dar um abraço, meu filho, porque amor não se pede, não se implora. Amor se dá. Amor é doar.
Nesta carta, sem pieguice eu lembraria a primeira vez que eu te vi – e você tinha os olhos fechadinhos, quando pude te sentir a face colada à minha, numa cama impessoal de hospital, antes de enfermeiras o levarem, berrando a plenos pulmões como a dizer – Estou vivo!
Eu lembraria como foi o tempo mais feliz da minha vida em que eu te vi crescer, junto com a penugem dourada de seus cabelos, e de como você era tão bonito que te chamavam de Bebê Johnson´s. Também recordaria o quanto nos meses seguintes, eu mal conseguia carregar aquela criança enorme em meus braços. Dos seus cabelos lourinhos, crescendo em cachos até os ombros, e eu feliz de ter você. De ter o privilégio de ser sua mãe.
Eu queria escrever uma longa carta, meu filho, que nem chegasse aos seus olhos, pra não te turvar a vista.
Não colocaria nela nem fotos, nem aromas, nem cores. Nas páginas vazias, sentimento. Eu não me faria de vítima nem heroína, de mãe dedicada ou sofrida, nem me justificaria com noites mal dormidas e um monte de boas intenções.
Prefiro me lembrar de mim mesma, mãe-menina, daquela que se sentava diante da TV junto com você assistindo um desenho qualquer ou aquela que vibrava e ria com séries de TV que você mal entendia. Lembraria aquela mãe que cochilava vendo um filme, enquanto você dizia: - Acorda, mãe. Você está perdendo.
Ouvir você me chamar de mãe. Como era bom.
Na carta não poderia faltar o seu olhar esperto de bebê, reconhecendo marcas nos letreiros e comerciais de TV, ou cantarolando Beatles com seu pai.
Mas não mencionaria a sua insegurança ao ser deixado na creche pela primeira vez. Nem dos meses seguintes em que se agarrava às minhas pernas com medo que eu fosse embora.
Colocaria sim, na carta, a sua facilidade quando aprendeu a ler, sua alegria em folhear gibis. Mas esconderia aquela dificuldade em escrever, com as letras cursivas subindo pelas páginas. Não escreveria na carta o quanto eu percebia que ir para a aula não era a melhor coisa do mundo para você. Mas colocaria sim, a sua felicidade em conviver com os poucos colegas que elegeu para amar.
Jamais recordaria a tensão que era para você, fazer os deveres de casa e como uma simples redação o deixava em pânico.  Mas não esqueceria aquele nosso momento em que você trazia a prova dobrada da escola pra eu não ver a nota e eu ia relendo todas as questões e somando pra chegar ao resultado, que comemorávamos, porque, quase sempre, era uma nota boa!
Eu colocaria na carta as brigas que comprei na escola pra te defender quando você ficava meio “viajante” nas aulas e eu pensava que você não era entendido em sua grandeza.
E escreveria nessa carta sem palavras aquele dia em que você, do nada, olhou pra mim e disse que meu sorriso era “o mais bonito do mundo”.
Essa lembrança, filho, faz nascer lágrimas nos meus olhos.
Eu sei que você está em algum lugar dentro de si mesmo, sei que você ainda é meu filho e, de alguma forma, me ama. Só não sei que caminhos percorremos e o quanto até hoje nos perdemos para chegar aonde não chegamos.
Eu te pediria desculpas pelo meu cansaço, pela luta sem certezas. Eu te pediria desculpas pelos atalhos que não deram em nada. Pela sua saúde incerta, que a cada dia te prega uma peça, uma alergia incurável, uma dor inexplicável, um suor que vem e vai, um frio que não acaba. Eu não tenho essas respostas, meu filho, para as perguntas que você faz. Como não entendo como pode você ser tão menino aos 18 e tão homem aos 18. Que mistério se encerra nesse ser humano tão apaixonante que você é – e tão difícil também.
Sei que nos perdemos de nós e sei que muitas vezes você não conseguiu me amar. E que muitas vezes não consegui te fazer entender que brigar com você, que discordar de você ou tentar colocar limites em algum momento de sua vida nunca quis dizer que não amo você. 
Justamente porque te amo, nunca pude somente te amar e deixar a vida correr. Justamente porque te amo, eu precisei agir. Certo ou errado. Com sucesso ou não.
Em algum momento da adolescência, meu anjo, nos afastamos e não consigo encontrar o caminho de volta, embora continue procurando por ele ao te desejar boa noite.
Como mãe desajeitada que sou, eu bem queria traçar todo seu caminho e te proteger, pra te impedir de sofrer, ainda hoje, com seu jeitão de garoto, medroso que é, ainda para atravessar a rua. E a sua mania de ser autêntico em tudo, que te impede de abrir a guarda para a maioria das pessoas. Ainda insisto em tirar fotos suas, tentando reunir a família feliz, mas nelas você não sorri. Não gosta de se ver exposto. E agora eu entendo por quê. Talvez agora finalmente eu tenha percebido, meu filho, o medo que você às vezes sente do mundo. E talvez seu “não sorrir” seja uma forma de aprender a não chorar.

Eu sei que errei muito com você, por ignorância, por medo, por excesso de amor – não por falta. E sei que te magoei muitas vezes. Mas esta carta não vai além do necessário para que te diga sem palavras: Eu te amo, eu te amo, e estou aqui. E jamais deixei ou deixarei de estar.

sexta-feira, 4 de agosto de 2023


Lição número 1: o mundo não começou no ano em que você nasceu.
Sim, muita coisa já foi feita e dita por alguém antes de você.
Lição número 2:
Não, você não inventou a pólvora. No máximo, criou umas frases bonitas.
Lição número 3
Não é que as pessoas são preconceituosas e ninguém entende bem a sua genialidade. É que muito do que você pensa e escreve já foi escrito e fundamentado por dezenas, centenas, milhares de escritores, pesquisadores, antropólogos, filósofos. Você tem todo o direito de divagar sobre a vida, mas não pense que uma frasezinha que você pinçou do fundo de seu cérebro nunca foi dita.
É por isso que é tão difícil, tão penoso, tão raríssimo de se encontrar bons livros, boas peças, bons filmes. Porque absolutamente (quase) tudo já foi dito, escrito, produzido, encenado.
Vamos tentar, então, como artistas, intelectuais e seres humanos, criar algo realmente novo.
E isso só pode ser feito se você tiver a humildade e o cuidado de descobrir quem são esses seres geniais, loucos, criativos, arrojados e desbravadores que construíram o mundo antes que você pensasse em existir.


( Lennon, Hemingway. Freud, Churchill, Jesus Cristo, Machado de Assis, Dylan, Sartre, Clarice, Beauvoir, Shakespeare, Virginia Woolf, Saramago, Hitchcock, Frida Kahlo, Rodin)

O passeio

Eu estava determinada a ajudar meu filho a sair da concha. Ele estava se sentindo deprimido pelo longo período de chuvas que estávamos passando (enchentes em vários municípios, alagamentos inclusive em bairros próximos ao nosso). 
Nos últimos tempos, João não gostava mais de ir à praia ou à piscina, mas para se sentir feliz, precisava saber que havia sol lá fora.
Dias chuvosos ou nublados o deixavam angustiado. E de férias, ele estava  triste dizendo que não tinha amigos nem programas para fazer. 
Eu estava de recesso para o Natal e havia prometido a mim mesma que caminharia com ele na praia, no calçadão, faria algo diferente.
Mas somente na quarta de Natal, o sol chegou.
No dia 26, decidi. Queria leva-lo para um restaurante à beira-mar, onde ele poderia sentar-se próximo à praia para inaugurar uma nova fase de exposição ao sol em sua vida.
Há anos, ele mantinha a pele branquinha, de quem não pega sol.
Mas sabíamos que com a proteção certa, os raios solares trazem benefícios para a saúde e para a mente. 
Decidi que iríamos todos para o Espera Maré, na Barra do Jucu, um balneário tranquilo, bucólico a 15 minutos da Praia da Costa. Era um restaurante original onde se comia bem, diante de uma bela paisagem natural, desfrutando da paz do local. E o  que era melhor: não era barulhento nem ficava lotado de pessoas.
Mas João não conhecia o lugar. Não lembro se já havia ido até a Barra, e quando o trajeto mostrou-se um pouco mais engarrafado do que o habitual, perguntou irritado: - Estamos indo para Manguinhos?
- Não, meu filho. Manguinhos fica na Serra, a mais de 30 minutos daqui. Vamos ficar aqui mesmo em Vila Velha, vamos à Barra.
E emendei: - Esse é o mesmo caminho que seguimos para ir à Guarapari.
Ele logo ficou aflito: - Mas é longe.
- Não, João. É a mesma direção,  mas em cinco minutos chegamos.
- Não gostei.
Ele continuou irritado, mesmo quando chegamos à Barra, enquanto eu e o pai mostrávamos a ele o lugar, tentando animá-lo.
- Olha só Joao, é um lugar calmo, tranquilo, parece até Manguinhos.
Chegando ao Restaurante, mesmo estacionando em rua tranquila, João se mostra ansioso quando Luisa salta do carro enquanto carros passam. 
Era uma rua de chão batido, de pouco tráfego, mas ele sempre alerta, temeroso do trânsito, principalmente com relação à irmã, a quem segura com uma força desnecessária.
- Luisa, sai da rua.
- Ah, João, que que tem? Eu nem estou no meio da rua.
- Sai, Luisa.
Eu intervenho:
- Luisa, vem pro acostamento. Você sabe como seu irmão é.
Entramos no restaurante, eu e o pai dele, ansiosos e com expectativa de agradar.
Sentamos à mesa:
- Aqui está bom, meu filho?
- Eu não queria vir.
- Mas agora estamos aqui. Vamos aproveitar o lugar.
- Está escuro aqui (o local tinha luz natural).
- Relaxa João.
Ele pega o tablet que ganhara de Natal e começa a brincar com ele, mas não perde o ar sisudo.
Insisto:
- Meu filho relaxa, qual o problema do lugar? Olha, não tem barulho.
- Eu não ligo mais pra barulho.
- Mas não pode aproveitar o lugar?
- Eu não gosto do desconhecido.
Argumento: - Mas da próxima vez não vai ser mais desconhecido. O que eu estou tentando é te mostrar mais possibilidades de diversão. Quero te apresentar ao máximo de opções possíveis, meu filho.
- Eu não queria vir aqui. Pensei que íamos no Regina Maris (um restaurante próximo de casa).
- Mas lá é barulhento.
- Eu não ligo mais para o barulho.
Frustrada, peço as bebidas. Refri pra eles, cerveja pro Aloisio. Eu não ia beber, estava dirigindo.
Pedimos uma moqueca de cação, com molho de camarão. Daria para os quatro. Antes, uma porção de batata frita. João devorou as batatas, todos nós gostamos. Bebeu a coca. E não sorriu.
Ao chegar a moqueca, ele recusa. Ofereço ao menos o molho de camarão. Ele come um pouco, mas logo para.
Eu me ausento da mesa, pouco depois para tirar algumas fotos com Luisa. Aloisio nos segue e capta algumas imagens de nós duas brincando.
Volto para a mesa e chamo João para ir comigo ao deque olhar a paisagem. Ele vai sem reclamar, mas bota o casaco com capuz. Estava ventando, realmente.
Pouco depois, ele tira o casaco, mas fica de costas para a câmera. Ele não gosta de fotos. Não sorri para um clique. Não vê sentido em sorrir para alguém ou algo. Tem dificuldade de sustentar o sorriso. Não sei se é por achar que sorrir para foto é hipocrisia ou se a dificuldade é física mesmo.
Mas há algum tempo percebo que João não sorri, ele apenas ri de algo ou de alguém. Quando está feliz, ele ri de coisas engraçadas que falamos. Ri de cenas de programas. Mas não sorri para o sol. Para algo belo. Quando se enternece com uma cena, se a vontade de sorrir for grande, ele vira o rosto, quase tapando os lábios. Meu filho tem vergonha de sorrir?
O fato é que na maioria das fotos que consigo tirar dele, ele está com o semblante sério, quase com raiva. Passa a ideia de alguém muito triste.
Eu, uma inveterada batedora de fotos, não consigo resistir. Quando o vejo numa situação feliz, quero registrar o momento. Quase todas as fotos que tiro dele trazem um rapaz tapando o rosto ou com ar sisudo e incomodado.  
Me divido entre respeitar sua vontade ou insistir em ter algo que não é natural. Vão dizer que é mania de neurotípico. Que nem todo mundo tem que ser obrigado a tirar fotos.
Mas o que eu sinto mesmo é de não poder captar e guardar para sempre um momento feliz. Pelo menos para mim.
Guardar para sempre o semblante desse rapaz bonito, tão bonito que dói. E que quase ninguém consegue enxergar. 
Se meu filho sorrisse mais, se ele fosse mais leve, seria ainda mais irresistível aos olhos. Porque como todo ou quase todo aspie ele é realmente belo.
Desistimos das fotos, do passeio, voltamos para casa acabrunhados. Eu queria tanto que tivesse dado certo. Eu preparei todo aquele programa para ele. Não era por mim, não era por Luisa, não era pelo pai dele. Era para ele, tão somente para ele, como quase tudo que eu fazia na vida, há anos.

E ele tinha detestado.

Filho

Não é verdade que quando envelhecemos
nossos filhos viram nossos pais.

Nossos filhos viram nossos pais
desde o momento em que nascem.

Com eles, crescemos, aprendemos,
adentramos o desconhecido,
enfrentamos os maiores medos,
cometemos erros absurdos,
e comemoramos os mais banais acertos.

Com eles, renascemos todos os dias.

À noite, quando meu filho dorme,
sussurro em seu ouvido
 - À benção, meu filho.

E ele, do mais profundo de seu sono,
responde em  silêncio:
- Deus te abençoe, minha mãe.

Banalzinho (Mária Santos Neves)




Onde andará meu príncipe,
Sem cavalo, espada ou encantamentos,
Que me desperte de um sono profundo
Com um único beijo?
Onde andará ele meu príncipe
Que me acorde no meio da noite
recitando poemas escritos no ar
E que me abrace como quem acolhe
uma criança?
Onde andará príncipe meu,
Que troque a lâmpada da sala
Pregue quadros na parede,
e puxe a cadeira para eu me sentar à mesa
E de repente, na hora do silêncio,
Me chame de sua princesa?