Eu estava determinada a ajudar meu filho a sair da concha.
Ele estava se sentindo deprimido pelo longo período de chuvas que estávamos
passando (enchentes em vários municípios, alagamentos inclusive em bairros
próximos ao nosso).
Nos últimos tempos, João não gostava mais de ir à praia ou à piscina, mas para se sentir feliz, precisava saber que havia sol lá fora.
Dias chuvosos ou nublados o
deixavam angustiado. E de férias, ele estava triste dizendo que
não tinha amigos nem programas para fazer.
Eu estava de recesso para o Natal e
havia prometido a mim mesma que caminharia com ele na praia, no calçadão, faria
algo diferente.
Mas somente na quarta de Natal, o sol chegou.
No dia 26,
decidi. Queria leva-lo para um restaurante à beira-mar, onde ele poderia
sentar-se próximo à praia para inaugurar uma nova fase de exposição ao sol em
sua vida.
Há anos, ele mantinha a pele branquinha, de quem não pega sol.
Mas
sabíamos que com a proteção certa, os raios solares trazem benefícios para a
saúde e para a mente.
Decidi que iríamos todos para o Espera Maré, na Barra do
Jucu, um balneário tranquilo, bucólico a 15 minutos da Praia da Costa. Era um
restaurante original onde se comia bem, diante de uma bela paisagem natural,
desfrutando da paz do local. E o que era
melhor: não era barulhento nem ficava lotado de pessoas.
Mas João não conhecia o lugar. Não lembro se já havia ido
até a Barra, e quando o trajeto mostrou-se um pouco mais engarrafado do que o
habitual, perguntou irritado: - Estamos indo para Manguinhos?
- Não, meu filho. Manguinhos fica na Serra, a mais de 30
minutos daqui. Vamos ficar aqui mesmo em Vila Velha, vamos à Barra.
E emendei: - Esse é o mesmo caminho que seguimos para ir à
Guarapari.
Ele logo ficou aflito: - Mas é longe.
- Não, João. É a mesma direção, mas em cinco minutos chegamos.
- Não gostei.
Ele continuou irritado, mesmo quando chegamos à Barra, enquanto eu e o pai mostrávamos a ele o lugar, tentando animá-lo.
- Olha só Joao, é um lugar calmo, tranquilo, parece até
Manguinhos.
Chegando ao Restaurante, mesmo estacionando em rua tranquila, João se mostra ansioso quando Luisa salta do carro enquanto carros
passam.
Era uma rua de chão batido, de pouco tráfego, mas ele sempre alerta, temeroso do trânsito, principalmente com relação à irmã, a quem segura
com uma força desnecessária.
- Luisa, sai da rua.
- Ah, João, que que tem? Eu nem estou no meio da rua.
- Sai, Luisa.
Eu intervenho:
- Luisa, vem pro acostamento. Você sabe como seu irmão é.
Entramos no restaurante, eu e o pai dele, ansiosos e com
expectativa de agradar.
Sentamos à mesa:
- Aqui está bom, meu filho?
- Eu não queria vir.
- Mas agora estamos aqui. Vamos aproveitar o lugar.
- Está escuro aqui (o local tinha luz natural).
- Relaxa João.
Ele pega o tablet que ganhara de Natal e começa a brincar
com ele, mas não perde o ar sisudo.
Insisto:
- Meu filho relaxa, qual o problema do lugar? Olha, não tem
barulho.
- Eu não ligo mais pra barulho.
- Mas não pode aproveitar o lugar?
- Eu não gosto do desconhecido.
Argumento: - Mas da próxima vez não vai ser mais desconhecido.
O que eu estou tentando é te mostrar mais possibilidades de diversão. Quero te
apresentar ao máximo de opções possíveis, meu filho.
- Eu não queria vir aqui. Pensei que íamos no Regina Maris (um restaurante próximo de casa).
- Mas lá é barulhento.
- Eu não ligo mais para o barulho.
Frustrada, peço as bebidas. Refri pra eles, cerveja pro
Aloisio. Eu não ia beber, estava dirigindo.
Pedimos uma moqueca de cação, com molho de camarão. Daria
para os quatro. Antes, uma porção de batata frita. João devorou as batatas,
todos nós gostamos. Bebeu a coca. E não sorriu.
Ao chegar a moqueca, ele recusa. Ofereço ao menos o molho de
camarão. Ele come um pouco, mas logo para.
Eu me ausento da mesa, pouco depois para tirar algumas fotos
com Luisa. Aloisio nos segue e capta algumas imagens de nós duas brincando.
Volto para a mesa e chamo João para ir comigo ao deque olhar
a paisagem. Ele vai sem reclamar, mas bota o casaco com capuz. Estava ventando,
realmente.
Pouco depois, ele tira o casaco, mas fica de costas para a
câmera. Ele não gosta de fotos. Não sorri para um clique. Não vê sentido em
sorrir para alguém ou algo. Tem dificuldade de sustentar o sorriso. Não sei se
é por achar que sorrir para foto é hipocrisia ou se a dificuldade é física mesmo.
Mas há algum tempo percebo que João não sorri, ele apenas ri de algo ou de
alguém. Quando está feliz, ele ri de coisas engraçadas que falamos. Ri de cenas
de programas. Mas não sorri para o sol. Para algo belo. Quando se enternece com
uma cena, se a vontade de sorrir for grande, ele vira o rosto, quase tapando os
lábios. Meu filho tem vergonha de sorrir?
O fato é que na maioria das fotos que consigo tirar dele,
ele está com o semblante sério, quase com raiva. Passa a ideia de alguém muito
triste.
Eu, uma inveterada batedora de fotos, não consigo resistir.
Quando o vejo numa situação feliz, quero registrar o momento. Quase todas as fotos que tiro dele trazem um rapaz tapando o rosto ou com ar sisudo e incomodado.
Me divido entre respeitar sua
vontade ou insistir em ter algo que não é natural. Vão dizer que é mania de
neurotípico. Que nem todo mundo tem que ser obrigado a tirar fotos.
Mas o que eu sinto mesmo é de não poder captar e guardar
para sempre um momento feliz. Pelo menos para mim.
Guardar para sempre o semblante desse rapaz
bonito, tão bonito que dói. E que quase ninguém consegue enxergar.
Se meu filho
sorrisse mais, se ele fosse mais leve, seria ainda mais irresistível aos olhos.
Porque como todo ou quase todo aspie ele é realmente belo.
Desistimos das fotos, do passeio, voltamos para casa
acabrunhados. Eu queria tanto que tivesse dado certo. Eu preparei todo aquele
programa para ele. Não era por mim, não era por Luisa, não era pelo pai dele.
Era para ele, tão somente para ele, como quase tudo que eu fazia na vida, há
anos.
E ele tinha detestado.